"Os amores modernos que se vão encher de moscas. Os amores que nem coisam nem saem de cima que vão cobrir-se de bosta. Os amores que se mantêm de pé e que nunca se vergam e que nunca se moem e doem e esvaem e contraem que vão bugiar. E para bem longe. Eu sou contra os amores de brincar. Até porque, se são de brincar, já não são amores. Até porque, se são amores, já não são amor. Sou contra os amores de brincar. E isso, parecendo que não, é muito sério.
Amar com orgulho é um amor de merda. Amar com altivez é um amor de merda. Amor com orgulho e altivez nem sequer é amar – é degustar. De gostar. De amar é outra coisa. Nem sequer é uma coisa. Amar exige uma capacidade de resistência que poucos têm. Amar exige uma capacidade de resistência que só quem ama tem. Amar exige que ames. O acto de amar – é por isso que se chama amar – exige que se ame quem queres, na prática, amar. Amar exige amar. E amar, factualmente (e de facto), é estar aos pés de que se ama. Mesmo que estejam sujos, mesmo que cheirem insuportavelmente (e amar também é, tantas vezes, suportar) a chulé. Amar é estar aos pés de quem se ama. É ser, se necessário, os pés de quem se ama. Sem merdicas, sem pudores, sem inchaços bacocos: estar aos pés de quem se ama é a única maneira de amar. Se queres ser a mulher que eu vou amar, tens de ser a mulher que eu vou escravizar. E tens de ser, esquece os paradoxos e concentra-te nos felicidoxos, a mulher que me vai escravizar. Escravizar. Estupidamente escravizar. Todos os dias escravizar. Deliciosamente escravizar. Se queres ser a mulher que eu vou amar, tens de estar à altura de rastejar. Por mim, para mim. Até te doerem os joelhos, as costas, os pés e tudo o mais que me der na real gana que tenha de te doer. Eu, deste lado, garanto-te que farei o mesmo. Porque o amor, é por isso que é a única coisa que vale a pena nesta merda desta vida, tem de doer. Mas o não-amor, o quase-amor, o amor de algibeira, o amorzinho ou o amorzeco, dói muito mais. Ai.
Já que tem de doer, que seja amor. Já que tem de doer – e tem de doer (por mais que queiras acreditar, e faz bem acreditar, que não, viver tem de doer) – que seja amor. Amor do bom, do que te leva ao mais fundo de ti, sim; mas também do que te leva ao mais alto de ti, ao mais pico de ti – à absoluta euforia, ao mais demencial orgasmo de ser. Já que tem de doer, que seja até à última gota – de suor, de esperma. De vida. Até à última gota: eis a maior das filosofias. Eis a única das filosofias. A única que vale a pena. A única que não mete pena. Até à última gota: viver. E também: até à última gota sofrer. Tudo até à última gota. Contra o marasmo, marchar marchar. Contra o enfado, viver viver. Já que tem de doer, que doa até à última gota. Espero, se queres mesmo ser a mulher que vou amar, que tenhas tomado nota.
E agora nota. Nota que quero, todos os dias, todo o dia de todos os dias, as filhas das vacas das 24 horas dos filhos das pêgas dos 365 dias do cabrão do ano, estar aos teus pés. Submissamente aos teus pés. Todos os dias, todo o dia: a ser teu. Nada mais do que isso: ser teu. Viver com o único objectivo de te viver, comer com o único objectivo de ter força para te ser a força para continuares, beber com o único objectivo de ter água em mim para te dar banho, se for preciso, com a minha língua. Viver com o único objectivo de te manter viva – e de, assim, me manter vivo enquanto teu ser escravizado. Orgulhosamente escravizado. Quero passar os dias a beijar-te os pés se for passar os dias a seres beijada nos pés aquilo que te faz feliz. Quero ser o chão que pisas, a cama em que te deitas, o papel higiénico que te limpa o rabinho. Quero ser exactamente tudo o que quiseres, tudo o que me quiseres. Porque é a ti, e só a ti com tudo o que és e queres e precisas, que quero. Quero tudo o que quiseres porque é só a ti que quero. Esta trampa é tão fácil de explicar que nem percebo porque é necessário escrever tantas palavras para o explicar. Mas cá vai de novo.
Quero que sejas minha escrava. Tens de ser minha escrava. Tens de ser a minha tudo. Esquece a panisgagem de seres a minha mais-que-tudo – isso é treta de poeta que quer comer uma gaja ou mais que uma gaja. Ser a mais-que-tudo é impalpável, é uma conceptualização abstracta que nada diz. Eu não. Eu não quero que tu sejas a minha mais-que-tudo. Eu não quero bullshits dessas. Eu quero que sejas a minha tudo. E a minha tudo tem de ser exactamente tudo. E não pode ser menos do que isso: tudo. Tem de ser a minha cozinheira se me apetecer comer, a minha garrafa de água ou de vinho se me apetecer beber. Tem de ser a minha senhora se me apetecer snobar e a minha prostituta se me apetecer fornicar. Tem de estar, sem parar, onde eu quiser estar; tem de fazer, sem parar, o que me apetecer concretizar. Tens de ser, repito, a minha tudo. A minha irreversivelmente tudo. A minha só tudo. Tens de ser o que eu sou como eu vou ser o que tu és. E a verdadeira fusão não é a de duas pessoas que se amam – é a de duas pessoas que se exploram. Eu quero explorar-te toda. Eu exijo explorar-te toda. E sem sequer direito a indemnização ou discussão. Explorar-te toda. E exijo – Deus te livre de não o fazeres – ser explorado todo. Não deixes nada por tocar, nada por sentir, nada por escravizar. Não deixes nada por viver: nada por me viver. Faz de mim o teu tudo. É isso que te ordeno. Faz de mim o teu tudo. E é tudo."
Pedro Chagas Freitas
in jornal "Notícias de Guimarães", de 2 de Setembro de 2011
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