terça-feira, agosto 11, 2009

Façam o favor de ser felizes!!!


Ele era 'o' cómico português. Mudou o humor porque teve coragem de se colocar sozinho à boca de cena, desafiando o público com monólogos inteligentes, desafiando-se a si em múltiplas personagens. Às caras diferentes, unia-as o sorriso maroto, olhos semicerrados e lábios como um rasgão na cara, que manteve até ontem, quando morreu, aos 79 anos. Andava aborrecido com o seu coração, que acabou por traí-lo. Não deixou de trabalhar, até ao fim. Ainda vamos vê-lo num documentário sobre humor para a RTP e num filme. O funeral parte às 18.00 do Palácio das Galveias para o Cemitério dos Olivais, em Lisboa. Depois, só a saudade do homem que fez o favor de nos tornar mais felizes, como dizia.

Havia quem lhe chamasse teimoso. Ele diria que era apenas determinado. Não fosse essa sua característica e talvez hoje ninguém soubesse A história da minha ida à guerra de 1908, pois a verdade é que foi Solnado que encontrou o texto - em espanhol, do actor Miguel Gila - que o comprou e adaptou e que insistiu para o integrar na revista Bate o Pé. Na véspera da estreia, em Outubro de 1961, os autores do espectáculo não estavam convencidos, queriam escrever um número à pressa, apostavam que o público não ia perceber. A Censura à perna, a Guerra Colonial a assustar os portugueses. Mas Raul Solnado conhecia bem o público. "Ou faço ou não entro", repetiu até à exaustão. "Ou faço ou não entro."

Fez e foi o que se viu. A gargalhada geral à terceira fala, o público a pedir bis, até ao ponto em que já todos sabiam a história de cor e a diziam ao mesmo tempo que o actor. Até ao ponto em que, um dia, no Barreiro, Raul Solnado percebeu que teve mais aplausos na entrada em cena do que à saída e jurou que nunca mais iria à guerra de 1908. Haveria de quebrar a promessa, claro, e por aí se vê que de teimoso, afinal, não tinha tanto.

Ao longo dos seus 57 anos de carreira, Raul Solnado fez revista e opereta, drama, comédia e musical, cinema e televisão, fez telenovelas e sitcoms, foi apresentador de concursos e talk-shows, especialista do nonsense, fez stand-up-comedy no tempo em que a expressão ainda não existia. Mas, se lhe perguntassem, dizia sem hesitar que era um actor cómico.

"O humor ou é fácil ou é impossível", costumava dizer. "É um dom inato. Há pessoas que nascem com o dom, há outras que não o têm. A atenção que se dá ao mundo é fundamental. O humorista tem um ponto de vista muito especial sobre aquilo que o rodeia. Tem a habilidade de detectar o ridículo no seu semelhante. E serve-se disso."

A primeira vez que percebeu o poder do riso tinha quatro anos. Estava no quintal, um pombo pousou-lhe no ombro e ele lançou um "foda-xe". Os adultos riram-se, mas o pai pô-lo de castigo. Deve ter sido das poucas vezes que usou um palavrão para fazer rir, esse não era de todo o seu estilo. Preferia um "humor amável, não agressivo."

"Quando me perguntam como crio o riso, digo: não sei", confessava em 2002. "E não sei mesmo, não faço a menor ideia, nem isso me preocupa, porque no dia em que mexer nesse mecanismo, tenho medo de o perturbar. Deixem-me estar nesta doce inconsciência e ignorância em relação a esse assunto." Era simplesmente "uma fábrica de rir".

Conta-se que no lugar da Fundada, concelho de Vila de Rei, Joaquim da Silva costumava dizer aos seus trabalhadores: "Acordem que já é sol nado." Conta-se que terá sido assim, em homenagem ao bisavô, que o bebé nascido em Lisboa a 19 de Outubro de 1919 se chamou Raul Augusto Almeida Solnado. A mãe morreu poucos dias depois. "Não a ter conhecido é a maior tristeza da minha vida", dizia. Na Madragoa, Raul Solnado cresceu brincando com o amigo Varela Silva. O pai, que o levava muitas vezes ao teatro, mesmo quando ele ainda não tinha idade para as peças que iam ver, sonhava com o dia em que Raul assumiria o comando da Vassouraria da Esperança. Raul, por seu lado, sonhava ser médico.

Mas isto foi antes de começar a frequentar a vizinha Sociedade Guilherme Cossoul, de se apaixonar pelo teatro e de conhecer os seus primeiros mestres, José Viana e Jacinto Ramos. Foi ali, no "conservatório da esperança", que se estreou como amador em 1947 na peça Maria Emília, de Alves Redol. Só estava cinco minutos em palco, mas era uma emoção. Chegou a inscrever-se no curso nocturno do Conservatório mas só foi a uma aula. "À Guilherme Cossoul devo os primeiros passos, a infância do meu nome artístico", contava. A estreia profissional aconteceria em 1952, no espectáculo Sol da Meia-Noite, encenado por José Viana no Maxime. Vasco Morgado viu-o e não hesitou em convidá-lo para o Monumental.

"O meu conservatório foram os bastidores do teatro. Estava ali a ver os grandes a representar, a compreender que cada um tinha a sua lei, o seu processo de provocar o riso. Um actor cómico começa por imitar, por receber influências, até que vai encontrando os seus próprios efeitos."

Raul Solnado era um tipo um pouco mais baixo do que a maioria dos seus colegas actores, não era um galã, lutava contra a timidez, gaguejava e tinha um rosto de miúdo reguila, sorria e fechava os olhos. Dizia Beatriz Costa: "Quando eu era a vedeta máxima do Parque Mayer, bastava aparecer o Raul com aquele sorriso de olhos rasgados para ficarmos bem dispostos."

Não tardou a ser notado pela crítica e aplaudido pelo público. Em 1955, na revista Bota Abaixo!, criou uma das suas mais famosas personagens, o Cantinflas, uma figura entre o clown e o pobre diabo que haveria de transitar para outros dos seus espectáculos .

Entre idas e vindas ao Brasil, a sua segunda casa, Raul Solnado sonhou com um teatro de bolso, à medida dos espectáculos que gostava de fazer. Chamou- -lhe Villaret, em homenagem ao actor que mais admirava, e no dia da inauguração, em 1965, colocou na parede as suas palavras: "Teatro é criação, imaginação, poesia. Para realidade, basta a fealdade da vida." No Villaret, foi actor e empresário, representava com o coração apertado a olhar para a plateia tentando perceber se teria vendido bilhetes suficientes para pagar a próxima letra. E, no entanto, apesar da pressão, foi um dos que mais se bateram pela folga semanal dos artistas, um direito até aí inexistente.

Até parecia que adivinhava. Foram as segundas-feiras que lhe permitiram embarcar na aventura do Zip Zip, programa de televisão que apresentou ao lado de Fialho Gouveia e Carlos Cruz e que, com o seu tom informal e convidados bastante diferentes (entre desconhecidos e curiosos, passaram por lá Almada Negreiros, Jorge Amado, Caetano Veloso e Gilberto Gil, Agostinho da Silva e muitos outros) se tornou um dos maiores sucessos da televisão portuguesa. A Primavera Marcelista chegou à televisão com o turista Fritz e o carteirista Alfredo, algumas das personagens que Solnado ali criou, ao longo de 32 emissões. "O Zip foi a coisa mais importante da minha vida. Senti que tinha mostrado muitas coisas desconhecidas ao meu país. O Zip fez muita gente feliz."

Boémio e mulherengo, da fama pelo menos nunca se livrou, Raul Solnado apaixonou-se pela actriz brasileira Joselita Alvarenga em 1956. Pediu-a em casamento por carta, ela respondeu-lhe por telegrama. Separaram-se em 1970. Com Jô, teve dois filhos, Zé Renato e Alexandra, a quem se juntaria mais tarde um terceiro filho, Mikkel.

Não voltaria a casar-se mas tinha na companheira Leonor Xavier - com quem partilhou a vida mas não a casa nos últimos 20 anos - o seu porto seguro. Foi ela que escreveu a biografia de Solnado, A Vida não Se Perdeu, "uma história escrita e partilhada com a isenção que o afecto permite".

Raul Solnado costumava dizer que queria morrer de amor. Foi quase. O coração já o tinha traído em 1982 - estava a trabalhar na Venezuela quando um enfarte o levou ao hospital, ele teve medo, sentiu-se "um inquilino da morte".

O coração voltou a incomodá-lo no ano passado. Há quinze dias, recordou ontem Carlos Cruz, Solnado confessava aos amigos que sentia "estar por um fio".

"Nunca ninguém sabe quando deve sair de cena, arrumar as malas, dizer: acabou-se. Portanto, a menos que Ele me faça esse sinal, vou continuar. Sempre!", dizia. E ele continuava. Nos últimos meses, fez com Bruno Nogueira As Divinas Comédias, série documental sobre a história do humor na televisão portuguesa, projecto das Produções Fictícias cujo primeiro episódio a RTP decidiu exibir ontem à noite. "Enclausurado num corpo demasiado frágil e debilitado para a imensa força criativa e o endiabrado humorista que ainda vibrava dentro do actor, o Raul continuava a ter ideias delirantes e a contar histórias com um timing à prova de idade", era assim que ontem o recordava Nuno Markl, no seu blogue. Com a mesma equipa, Solnado estava também a planear um programa onde revisitaria a sua carreira.

Vai ser uma sensação estranha vê-lo em América, o filme de João Nuno Pinto que está agora a ser terminado. A rodagem decorreu entre Outubro e Dezembro de 2008 e Raul Solnado chegou ao fim do ano exausto. "A minha personagem morre e tive de filmar aquilo de uns dez ângulos diferentes", contou em entrevista ao Expresso. "Dez mortes é muito para um homem só."

Raul Solnado não gostava de homenagens e não queria homenagens. A melhor homenagem que podemos fazer-lhe é tentar cumprir aquele seu pedido quando, em 1983, se despedia dos espectadores do Fim-de-Semana com o "Façam o favor de ser felizes" .


In: DN Artes

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