Chegou a vez de voltarmos a Ibsen, pedra basilar de tanto teatro contemporâneo. E não queremos apenas refazê-lo, mas sim reformular os dados do seu teatro. Convidámos José Maria Vieira Mendes (autor que revelámos em 1998 e que tem desenvolvido uma actividade incessante como dramaturgo desde então com mais de 10 peças representadas) para repensar a dramaturgia de Ibsen. E repensar a ansiedade de “Hedda Gabler”.
REESCREVER HEDDA
A proposta que me é feita enquanto dramaturgo deste projecto é a de uma reescrita da Hedda Gabler. Não uma reescrita que pretenda uma actualização (coisa que aliás não sei muito bem o que seja…), mas que se ofereça como leitura minha, hoje, do texto do Ibsen. Não se pretende pois tornar o texto de Ibsen legível para uma sociedade contemporânea, recorrendo a uma transposição de temáticas e linguagem e estilos para os tempos de hoje, mas sim distanciar-nos de leituras mais casualistas que procuram uma navegação sociológica pelos tempos de hoje e aproximar-nos daquilo que consideramos ser intelectualmente mais honesto, ou seja, perseguir as ideias que atravessam os tempos, que sempre podem existir.
Escrever como leitor é pois provavelmente o objectivo principal a atingir. Como se a figura do leitor fosse a única figura a acompanhar fielmente a passagem do tempo sobre a obra de Ibsen. Como leio hoje o Ibsen e esta peça em particular e o que é que eu, enquanto dramaturgo português com dilemas de escrita situados num tempo e biografia particulares, leio nesta peça? E já agora, o que é isso de escrever como leitura?
O teatro de hoje, ultrapassado um século XX de importantes movimentos de escrita e encenação, tem uma vida bem diferente daquela que acompanhou Ibsen. E por isso um dos primeiros impactos, para mim enquanto leitor que escreve, é o desfazamento de um naturalismo ibseniano difícil de suportar ou transportar. Provavelmente por tiques e vontades pessoais que me têm afastado do género, mas por outro também por ser uma espécie de obstáculo insrito no texto de Ibsen, que quanto a mim impede uma tentativa de actualização. Não funciona (ou não satisfaz), do meu ponto de vista, a escolha de um computador ou pen para substituir o manuscrito queimado. Não me parece interessante a substituição de uma criada a anunciar entradas por uma campainha… E se, apesar de tudo, se consegue trabalhar com estas marcas, disfarçando-as, secundarizando-as, já muitos dos conteúdos, carimbados por uma época com direitos e garantias diferentes dos de hoje, dificilmente se tornam maleáveis. Não chega o transporte de um feminismo de final de século para um movimento idêntico de princípio de um outro século. É difícil suportar a relação do casal recém-casado num espectáculo que se queira “actual”. Etc, etc.
Curiosamente, desaparecendo a preocupação de actualização ou transporte para o tempo e sociedade contemporâneos, consegue-se desmpoeirar a leitura e rapidamente a escrita se concentra nas personagens enquanto espécie animal com preocupações atemporais. O que interessa nesta Hedda? O que interessa no casal? O que interessa no terceiro elemento, esta espécie de soldado regressado da guerra? E o que pode interessar na Thea Elvsted? É aqui que se concentra o trabalho de escrita. E não tanto procurando psicologias, traumas de passado, questões edipianas, mas sobretudo focando-nos em ideologias, problemas intelectuais, pensamentos sobre a vida, sobre a escrita e sobre a morte.
Passamos pois pelos mesmos patamares em que Ibsen se apoiou, aproveitando os dois revólveres, o valioso e prometedor manuscrito, o casal recém-casado, o provável concorrente, o velho juiz com interesses malsãos, e uma jovem que abandona o marido por um amor. Mantemos também a velha tia Juliana, agora apenas em duas aparições mais longas, com um discurso de sábia confusa ou sibilina, pintalgado com piadas, inversões e trocas. Reforçamos o isolamento montanhoso de Eilert Lovborg, acentuamos uma diferença de idade relevante entre Hedda e Thea e acentuamos um ponto de vista para a narração, como se nesta nossa Hedda Gabler tudo viesse da cabeça da protagonista. Uma mulher, numa sala onde entram e saem as pessoas da sua vida, a rejeitar esta realidade e a caminhar pausadamente e decididamente para o suicídio.
E assim insistimos nesta nossa Hedda Gabler num texto que discute as utopias, que pensa as ideologias e que vai atrás dos fundamentalismos. Olhar para Hedda Gabler como uma mulher à procura de um fundamento, de arma em punho, pronta a defender ou seguir uma ideia até ao fim, querendo levar com ela todos os que a rodeiam e saindo vencedora derrotada, numa morte paradoxal que funciona como uma coroa de folhas de videira na cabeça de quem perde. Uma mulher determinada a viver uma impossibilidade ou, roubando as palavras do filósofo alemão contemporâneo Marcus Steinweg, determinada a viver um “sonho com valor de verdade”. E uma mulher que arrasta todos os que vivem em seu redor, questionando-os, desequilibrando-os, pondo-os em causa, como aliás a arte é e deve ser capaz de fazer. Lê-se deste modo a Hedda Gabler também como um dilema artístico. Como se a discussão girasse em redor de uma vontade de arte que contém o seu suicídio. Uma vontade que quer ser mais do que pensamento e que exige uma passagem ao acto que se vê concretizada em dois revólveres.
Esta é, quanto a nós, a “actualização” possível, ou seja, não uma aproximação a um tempo ou geografia, mas uma aproximação a um pensamento, o pensamento de um dramaturgo que também é o pensamento de um teatro ou da arte hoje (e sempre?). O pensamento que se faz no gesto de leitura e que, concretizado em escrita, projecta as dificuldades de um leitor, as omissões, as escolhas e as interpretações.
José Maria Vieira Mendes
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