vingança
O Amor é muitas vezes um cão sem faro, uma sequência de erros sucessivos que formam um erro enorme e absoluto. É uma pega de frente a um touro agressivo de cornos bem afiados. No fundo é uma cegueira total. E ainda bem que é assim, porque se assim não fosse o Amor nunca poderia ser ele mesmo. Para acertarmos é preciso falhar primeiro. Uma, duas, três, ou quantas vezes for preciso.
Eu sentia que ia passar a noite a seguir um grupo de homens e mulheres a alguns metros de distância, como um lobo que ainda não foi aceite pela matilha, mas quando a Márcia me telefonou a perguntar se eu queria ir jantar com ela e uns amigos aceitei sem hesitar. Depois disso veio uma viagem de automóvel, umas apresentações mornas que confirmavam que eu não era bem vindo no grupo e uma aprendizagem sobre como parecer que se está bem disposto quando de facto não se está.
Apaixonei-me por Márcia uns dias antes na internet, e quando um dos meus melhores amigos me criticou por eu me sentir apaixonado por alguém que nunca tinha visto, rebati o seu pessimismo com a certeza que um amor que começa pelas palavras é de certeza mais forte do que um que começa pelo prazer do sexo. Enganei-me. E foi assim que conheci a Sandra.
Márcia sentou-se à minha frente na longa fila de mesas e cadeiras no restaurante e era a única pessoa disponível para falar comigo. Por isso, quando o deixou de fazer passei a sentir-me numa ilha. Eu, uma garrafa de vinho e uma mesa enorme vazia cercada por um mar de gente a dançar em fila uma música pateta qualquer. Até que da maré brava deu à costa Sandra, uma mulher em quem eu tinha reparado por ter passado o jantar calada a cinco ou seis cadeiras de distância de mim, e que de repente, talvez embalada por aquela dança frenética, se sentou ao meu lado e bebericou directamente do meu copo de vinho.
- Vamos até lá fora? - Perguntou.
- És a minha única companhia. Faço tudo o que tu quiseres. - Mendiguei.
- Tudo mesmo?
- Tudo.
- Dormes comigo se eu te pedir? - Riu-se, não percebi se pelo vinho ou pela pergunta.
- Durmo.
Segui-a de perto para não a perder. Primeiro entre todos os que dançavam, depois lá fora entre a noite que entretanto se deitara na cidade e por fim de automóvel, até ela passar o portão do jardim duma casa de campo e me fazer sinal para estacionar na rua. Veio-me buscar ao carro e levou-me para dentro pela mão.
- Não quero sexo. - Disse. - Não te esqueças que disseste que fazias tudo o que eu quisesse.
Assenti que sim com a cabeça. Na verdade nem me importava. Para mim estar ali significava pelo menos salvar aquela noite de um vazio total. Deitámo-nos e falámos de tudo, que às vezes é mais fácil falar com um desconhecido do que com um amigo sobre as coisas que nos ocupam o espírito. Por fim adormecemos, talvez ao mesmo tempo.
O som dum cão a ladrar chegou antes da luz do Sol, mas só com ela é que acordei definitivamente. Tapei Sandra que parecia ter dormido com o vento, pelo menos pela forma dos lençóis do seu lado da cama, e saí para lavar a cara e urinar. Dei de frente com a Márcia a sair do quarto, que pelos vistos chegara já bastante alcoolizada a casa e dormira mal por causa da correspondente dor de cabeça.
- Eu convido-te para vires cá e tu acabas na cama com a minha irmã? - Perguntou pondo a mão na testa como se a sua recente descoberta lhe tivesse agravado a enxaqueca.
- É bem feita! - Gritou a irmã lá de dentro.
Eu, que nem sabia que elas eram irmãs, tinha servido para uma vingança qualquer. Talvez por isso, e por ter simpatizado com Sandra, não revelei que debaixo daqueles lençóis só se tinham trocado palavras.
Vim embora. Nunca mais as vi.
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